domingo, 31 de outubro de 2010

REFORMA PROTESTANTE: CAMINHOS E (DES)CAMINHOS DA IGREJA

Por Erasmo Carlos


A Reforma Protestante para ser compreendida faz-se necessário estudar o imaginário da sociedade européia da baixa idade média, período compreendido entre os três últimos séculos do medievo. Embora Lutero tenha afixado as 95 teses na porta do castelo de Wintemberg na Alemanha, em 31 de outubro de 1517, portanto, no século XVI, entretanto desde o século XII, profundas transformações vinham ocorrendo nas relações sociais daquela sociedade.
Foram condições políticas, econômicas, religiosas, sociais e artísticas que foram sendo alteradas ao longo de três séculos que modificaram a estrutura religiosa do velho mundo. Para Timothy (1993, 26) “ Perto do fim da Idade Média, a ansiedade da culpa e da condenação predominou”. Esse período ficou marcado por pelo menos três tipos de ansiedade, morte, culpa e perda de sentido afirma Timothy. Esses temas serão retratados na literatura, arte e teologia.
Na baixa Idade Média há um profundo desespero por respostas que satisfaçam às necessidades emocionais e espirituais de uma sociedade amedrontada pelo juízo de Deus. Numa sociedade assim, existe um campo fértil para a esperança. Foi exatamente aqui, que os reformadores perceberam as condições para propor uma alternativa. Uma perspectiva diferente, um olhar totalmente autônomo daquele estado de coisas. A doutrina da justificação pela fé e seu novo olhar sobre a eclesiologia, falaram profundamente as concepções de seu tempo, afirma Timothy.
A Reforma Protestante foi gerada em um ambiente “de desassossego mórbido com o sofrimento e a morte” na sociedade européia dos séculos XIV e XV. A crise agrária gerava conflitos entre camponeses e donos de terras, a peste bubônica ou peste negra assolou a Inglaterra nos idos de 1349, arrasando pelo menos um terço da população de toda Europa. No século XVI outra peste, a sífilis, atacou os europeus. Uma doença trazida pelos marinheiros de Cristóvão Colombo, afirma Timothy. Tudo isso, somado a descoberta do canhão de pólvora, transformou a guerra numa nova selvageria. O sentimento de incerteza quanto a vida na terra empurrou aquela sociedade a buscar inexoravelmente toda espécie de expiação de sua própria culpa.
O imaginário coletivo daquele povo foi forjado durante toda Idade Média por uma igreja que tinha se desviado do caminho do Senhor ao longo dos séculos do medievo. Muitos pecadores no afã de seus pecados serem perdoados ou expiados recorriam aos sacramentos e parassacramentos autorizados pela própria igreja medieval: Indulgências, peregrinações, relíquias, veneração dos santos, o rosário, dias de festa, adoração da hóstia consagrada, a repetida reza do “pai-nosso” – tudo isso era parte de um sistema de penitências mediante o qual se assegurava uma maneira apropriada de estar perante Deus, afirma Timothy.
Nem mesmo as crianças escapavam das garras do clero. A partir dos sete anos, idade considerada de responsabilidade, apresentava-se ao padre e recitava o pai nosso e o credo e depois respondia a diversas perguntas. Em tudo isso está o desejo de aliviar a culpa que permeava aquela sociedade adoecida espiritualmente e sedenta da graça de Deus. Aquela sociedade estava tão impregnada da idéia de culpa, morte, inferno e paraíso que Timothy George (1993, 31) assim se expressa:
Um dos portais da igreja na catedral de Mogúncia descreve
o juízo final: Cristo, o juiz, está no topo, os redimidos estão sendo levados
por anjos para o Paraíso, enquanto os amaldiçoados, com rostos contorcidos,
estão sendo transportados acorrentados por demônios para o inferno.

Assim sendo, poderíamos afirmar que essas foram em linhas gerais os pré-requisitos da Reforma, ou seja, os reformadores foram capazes de ler a alma daquela sociedade e responder às suas angústias, redescobrindo os princípios de Deus revelados em sua Palavra. A sede por Deus, o desespero por aplacar a ira divina era tamanha que o povo fazia tudo que fosse necessário para aliviar a ira desse Deus faminto por justiça.
A crise de identidade e autoridade pela qual passava a igreja medieval era outro aspecto somado a toda ansiedade da qual já mencionamos, que influenciaram consideravelmente o movimento de reforma. Aquele modelo de igreja foi posto em dúvida, questionado. Nenhum dos teólogos do medievo se preocupou com o estudo sistemático da natureza, função e ministério da igreja. Portanto, naquele momento os reformadores encontraram campo fértil para redesenhar toda fundamentação da existência da igreja do Senhor.
Assim sendo, aquele contexto propiciou um novo paradigma de igreja, moldado pelo espírito reformador da época. Uma igreja mais democrática, com a face de cada Estado Nacional. Os séculos XIV-XV geraram um ambiente de efervescência sem precedentes na história da humanidade na Europa. No colapso da sociedade medieval geraram-se as condições para o surgimento da modernidade e um novo caminho para a igreja do Senhor.
Os séculos se passaram e a Reforma Protestante do século XVI continua suscitando questões intrigantes relacionadas a natureza, função e ministério da igreja contemporânea. A igreja evangélica brasileira vive uma crise profunda de identidade e autoridade. As conquistas oriundas do movimento de Reforma no século XVI, parece está sendo negociadas em nossos dias. O sacerdócio universal dos crentes deu lugar à afirmação de um clericalismo adoecido. Nos últimos vinte anos de história da igreja evangélica brasileira tem sido marcado por escândalos envolvendo lideranças nacionais.
As indulgências e relíquias são redesenhadas na forma de mercadologização do sagrado, do evangelho, da fé nas comunidades locais. A sede pelo poder tem conduzido pastores, bispos e apóstolos a disputarem um lugar no parlamento municipal, estadual e ou federal, com um discurso triunfalista de “salvadores” da pátria.
A teologia da prosperidade imprime uma dinâmica de barganha, de negociação com Deus na relação com o sagrado. Jesus Cristo ficou reduzido a resolver problemas de dores de cabeça, no braço, na costa, na virilha, no dente, numa relação puramente utilitarista da fé. O púlpito está vazio de mensagens expositivas e centradas na pessoa de Jesus Cristo e cheios de chavões, clichês. Líderes arrogantes, prepotentes, negociadores da palavra de Deus, avarentos, presunçosos, amantes do dinheiro. As instituições denominacionais com prazo de validade vencido. Disputa pelo poder, por ovelhas, por grandes igrejas, por dinheiro. Tudo isso suscita uma enxurrada de questionamentos quanto a necessidade de uma nova Reforma.
A igreja contemporânea estaria se prostituindo? Será que perdemos o caminho ou nos perdemos no caminho? Será que a igreja dobrou os joelhos diante do sistema mundano? Que lições podemos extrair quando olhamos pelo retrovisor da história da igreja?
A história da igreja tem muito a nos ensinar. Aprendemos inclusive com os erros daqueles que foram instrumentos nas mãos do Senhor. A igreja constrói seu caminho na história e nesse sentido, Deus tem todo controle da caminhada de seu povo. A sede dos reformadores era por uma igreja pura, imaculada, comprometida com os valores do Reino de Deus. Esse deve ser nosso maior desejo, ansiar caminhar pelo caminho da santidade, da fidelidade, do serviço, da humildade.
O dia 31 de outubro nos faz olhar para o passado com a convicção de que a Reforma Protestante foi uma resposta de cristãos sinceros desejosos em transformar a realidade espiritual de sua época em um movimento de retorno às Escrituras. Nesse sentido, a igreja vive sempre em busca de reforma. Em cada momento da história os cristãos são desafiados a responderem às inquietações de seu tempo.
Necessitamos urgentemente repensar nosso engajamento na sociedade, redesenhar nossa missão no mundo, redescobrir os princípios de simplicidade e pureza do Reino de Deus. A despeito da malignidade do mundo, a igreja enquanto corpo de Cristo é peregrina. Caminha pelo deserto da história dependendo exclusivamente da Graça de Deus. Suas lutas, seus dilemas, suas frustrações, suas incertezas, são vencidas no enfrentamento diário. Que Deus tenha misericórdia de seu povo.

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